O dia 8 de abril começou como qualquer outro na Escola de Referência em Ensino Médico Ageu Magalhães, localizada na zona norte do Recife, em Pernambuco. Após o almoço, porém, um grupo de alunos apresentou uma série de sintomas inesperados, como tremores, dificuldade para respirar, suor excessivo, desmaios e choros.
No total, 26 adolescentes tiveram esses incômodos de uma só vez, o que exigiu o envio de seis ambulâncias e duas motocicletas para atendimento de emergência. Apesar da confusão, nenhum dos acometidos precisou ser enviado para o hospital.
Embora chame a atenção, episódios como esse não são exatamente novidade: surtos psicóticos coletivos, cujo nome oficial nos manuais de medicina é “reação psicogênica de massa”, são registrados há pelo menos 600 anos — desde o século 14, quando ocorreram as “febres” de dança incontrolável que acometeram povoados inteiros na Europa, até uma grave crise de estresse que afetou adolescentes do Acre após a vacinação contra o HPV em meados de 2015.
Em resumo, esse fenômeno está relacionado a uma série de sintomas — que vão de crise de ansiedade e náusea a desmaios e paralisias — e atinge dezenas ou centenas indivíduos que integram o mesmo grupo social.
Entenda a seguir como acontecem esses surtos psicóticos coletivos e o que pode ser feito para prevenir ou combater eventos desse tipo.
Emoções são transmissíveis
O psiquiatra José Gallucci Neto explica que a reação psicogênica de massa é um problema “coletivo e compartilhado, que envolve sintomas físicos ou emocionais e para os quais não existe uma causa biológica ou um fator externo”.
Em outras palavras, a reação daqueles indivíduos não pode ser explicada por uma doença infecciosa ou pela intoxicação por um gás que contaminou o ambiente que eles compartilham, por exemplo.
“O que desencadeia esse processo é o psicológico, a proximidade e o compartilhamento de crenças entre as pessoas”, diz o especialista, que é diretor do Serviço de Eletroconvulsoterapia e Eletroencefalografia do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas de São Paulo.
“Ao ver alguém passando mal, nosso próprio psiquismo pode nos sugestionar de que também estamos sofrendo com aqueles mesmos sintomas. Na sequência, começamos a ‘monitorar’ o corpo e interpretar qualquer sinal como algo preocupante.”
“Isso, por sua vez, gera uma reação em cadeia e leva a surtos coletivos”, completa o médico.
Entre os sintomas típicos da reação psicogênica de massa, Gallucci lista falta de ar, tontura, sensação de desmaio, ânsia de vômito, náuseas, crises de ansiedade, contrações musculares, convulsões e paralisias.
E tudo isso acontece justamente pelo fato de vivermos em sociedade e nos importarmos com os sentimentos dos outros, especialmente daquele grupo mais próximo e com o qual nos relacionamos.
“A sociabilidade é uma necessidade de sobrevivência da nossa espécie”, analisa o psiquiatra Lucas Spanemberg, pesquisador do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul.
“Nosso psiquismo é estruturado a partir dessa capacidade humana de se importar, se empatizar, se comunicar e se afetar pelo comportamento dos outros”, complementa o especialista, que também é professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Embora adolescentes sejam o grupo com maior propensão a ter reações coletivas do tipo (por serem naturalmente mais influenciáveis pelo ambiente externo), já foram registrados fenômenos do tipo em vários perfis.
Na Primeira Guerra Mundial, por exemplo, alguns soldados que ficavam meses ou anos nas trincheiras tiveram o chamado shell shock, um quadro de torpor profundo, com uma incapacidade de se mover, falar ou fazer qualquer outra atividade.
Vale dizer aqui que muitos desses conceitos ainda são tema de intenso debate dentro da comunidade médica. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS), por exemplo, não gosta do uso da palavra “psicogênico” para descrever essas reações emocionais massivas.
No passado, inclusive, chegou-se a classificar esse quadro como “histeria coletiva”. Mas o termo caiu em desuso e hoje é até considerado inadequado. Histeria, que vem do grego histerus, ou útero, era um quadro que os médicos do passado erroneamente associavam somente às mulheres, como se transtornos mentais apenas acontecessem no sexo feminino e estivessem de alguma maneira relacionados à falta de sexo ou às disfunções no aparelho reprodutor.
Agudos ou crônicos
De forma geral, as reações psicogênicas de massa podem ser divididas em dois grandes grupos: os casos agudos e os crônicos.
“A reação aguda normalmente acontece de forma repentina, é transitória e a maioria dos quadros se resolve em menos de 24 horas”, resume o médico Renato Luiz Marchetti, que coordena o Projeto de Epilepsia e Psiquiatria do IPq, em São Paulo.
“Provavelmente, se forem tomadas as condutas corretas, episódios do tipo não se repetirão e não vão ser incapacitantes para quem for acometido”, completa.
Pelas poucas informações disponíveis, os especialistas acreditam que o episódio recente no Recife se encaixe nessa primeira definição.
Já nas reações psicogênicas de massa que são crônicas, a situação se torna um pouco mais desafiadora.
“Nesse caso, normalmente existe um tempo entre o estímulo e a ocorrência dos sintomas. O curso da crise também é arrastado e bem mais incapacitante”, descreve Marchetti.
Os indivíduos acometidos por esse tipo podem desenvolver tremores, tiques, perda de força muscular e até paralisia de membros — manifestações relacionadas à influência das emoções no sistema nervoso.
O exemplo mais recente de uma reação massiva e crônica aconteceu no Acre em meados de 2012 a 2017.
Um grupo de 74 adolescentes (em sua maioria meninas) começou a apresentar incômodos sérios, como convulsões e paralisias, após tomarem a primeira dose da vacina que protege contra o HPV, vírus que está por trás do câncer de colo de útero e diversos outros tipos de tumores.
Diante de manifestações tão atípicas, a primeira reação de todos os envolvidos foi suspeitar que o imunizante era o culpado.
O assunto ficou tão sério que o Ministério da Saúde resolveu lançar uma investigação formal e convocou Gallucci e Marchetti, dois dos médicos ouvidos nesta reportagem, para conduzir os estudos.
“Nós selecionamos os 12 pacientes mais graves e trouxemos para São Paulo, onde ficaram internados e passaram por uma série de exames, como ressonância magnética e análise do líquor [líquido que circunda o cérebro e a medula espinhal]”, relata Gallucci.
A partir dessa batelada de testes, a meta dos especialistas era descobrir se havia alguma evidência de um efeito das doses de vacina no sistema nervoso desses adolescentes. Os resultados mostraram que não havia nenhuma lesão ou substância que explicasse as convulsões e as paralisias.
“O caso do Acre, na verdade, foi uma reação psicogênica de massa que se tornou crônica, sem que ninguém fizesse o diagnóstico correto e propusesse um tratamento adequado”, analisa Gallucci.
Os resultados da investigação brasileira foram publicados em outubro de 2020 no periódico especializado Vaccine.
“No Acre, nós vimos como a ocorrência de um quadro desses é algo complexo, que depende de um conjunto de fatores. As meninas acometidas faziam parte de grupos sociais com problemas importantes, que envolviam uma cultura patriarcal em crise, conflitos familiares, uso inadequado de redes sociais, influência religiosa e uma crença antivacina muito importante”, lista Marchetti.
Em suma, o próprio medo de que a vacina contra o HPV pudesse causar algum efeito colateral foi suficiente para que esses jovens de fato desenvolvessem reações graves (sem que o imunizante tivesse algo a ver com isso). E, considerando que as emoções são contagiosas, esse cenário gerou uma reação em cadeia num grupo que apresentava uma série de similaridades.
Marchetti conta que existe até um termo específico para falar desse surto psicogênica de massa quando o assunto são as vacinas: reação relacionada ao estresse da imunização.
“Desde 1972, a OMS tem um grupo que monitora e estuda essas reações psicogênicas associadas aos imunizantes. Já foram descritos casos na Bolívia, no Japão, na Dinamarca, no Brasil e, mais recentemente, na Tailândia com a vacina contra a covid-19”, lembra.
E que fique claro mais uma vez: a vacina em si não tem nada a ver com esse efeito. A questão ocorre por um misto do ambiente, do grupo social, das emoções e do estresse.
Mas será que existem formas de tratar essas condições?
A chave está na comunicação
Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil destacam que tratar as reações psicogênicas de massa envolve muito cuidado e uma dose extra de diálogo.
“A grande dificuldade está no fato de os próprios médicos desconhecerem esse fenômeno, o que dificulta o diagnóstico. As doenças psicogênicas de massa sempre ocorreram, mas elas ficaram meio esquecidas nos últimos 40 ou 50 anos”, aponta Marchetti.
Nos casos agudos (como possivelmente foi o do Recife), o primeiro passo está em separar as pessoas em crise para que elas se acalmem aos poucos. A ideia é limitar o contágio emocional dentro daquele grupo — e evitar que outros indivíduos também sejam afetados.
“Já nas situações crônicas, é preciso lançar mão de uma modalidade de psicoterapia cognitivo-comportamental desenvolvida especificamente para a reação psicogênica de massa”, diz Gallucci.
Esse tratamento psicológico envolve não apenas os pacientes, mas também a família e todo o grupo social. A meta é analisar comportamentos e pensamentos, de modo a modificar as crenças arraigadas que levaram àquela situação.
Marchetti reforça como a comunicação é parte primordial de todo o processo de diagnóstico e tratamento de uma enfermidade dessas.
“Nós, como médicos, precisamos explicar o que a pessoa teve e deixar claro que ela não foi acometida por uma doença orgânica grave”, recomenda o psiquiatra.
“Mas aí vem um risco grande: quando você diz que não é uma doença grave, o paciente e os familiares podem achar que tudo não passou de fingimento ou frescura”, continua.
Como sabemos, não é só porque um problema é “coisa da cabeça” de alguém que ele se torna falso ou menos relevante — quadros de ansiedade, depressão e outros transtornos que afetam a mente são debilitantes e podem ter sérias repercussões na saúde.
“É por isso que é importante deixar claro que se trata de uma reação psicogênica de massa, uma condição médica que, na maioria das vezes, é transitória e pode ser resolvida adequadamente”, complementa Marchetti.
O que aconteceu depois
Nos dois exemplos principais que ajudaram a ilustrar essa reportagem — a vacinação no Acre e os alunos do Recife — a situação ainda está em aberto e sem muitas definições.
“No caso do Acre, nós propusemos que as equipes de saúde que lidam com os adolescentes fossem treinadas para aplicar a terapia cognitivo-comportamental, mas a pandemia de covid-19 acabou paralisando o projeto”, informa Gallucci.
“Infelizmente, muitas famílias acabaram aderindo a tratamentos para os quais não há evidência científica alguma”, lamenta.
Para entender o que ocorreu no Recife após o surto, a BBC News Brasil entrou em contato com a Secretaria de Educação e Esportes de Pernambuco.
A superintendência de comunicação da entidade enviou as respostas por email, dizendo que a escola onde o episódio aconteceu “recebeu, no primeiro dia útil após o caso, uma psicóloga para uma escuta com os estudantes, que alegaram estarem passando por uma crise de ansiedade na última semana”.
“A profissional fará um levantamento dos que não têm acompanhamento psicológico para encaminhá-los a um atendimento.”
“A unidade de ensino também agendou uma reunião com outra psicóloga e com os responsáveis pelos estudantes para falar sobre o tema e as responsabilidades de cada um (escola e família) neste processo”, continua a nota.
Por fim, a escola promete criar projetos para reforçar a “escuta ativa e as rodas de diálogos com os estudantes”.